* Este conto foi também publicado no site brasileiro Contos Fantásticos.
O rapaz levantou a vista do chão, olhou para frente e viu-o. Lá ele estava: a olhar, de olhos vácuos, para o infinito. O ar solene e algo majestoso do Velho impressionavam-no sempre, como agora sentado na pedra branca, que os miúdos da aldeia chamavam a “Pena Patela”. Apoiava-se levemente na bengala – comprida – que, fincada no chão, apontava para ao céu, segurada pela sua mão direita. A perna do mesmo lado dobrada e a outra estendida, suportando o leve peso da mão esquerda sobre o joelho.
A imagem estática confundia-se com a paisagem até fazer parte dela. De perfil enxuto, queixo proeminente, barba branca e cabelo longo, semelhava um velho druida, como aqueles que o pai lhe tinha mostrado num livro antigo. Ou como aqueloutros dos quais ouvira falar quando ia, pelo verão, à casa dos primos na Irlanda.
O lugar em que se encontrava o ancião era um pequeno outeiro que dominava a parte alta do vale do Minho: A Pena Patela. Era a atalaia preferida do Gaibor.
A vista alargava-se até alcançar as suaves montanhas sagradas das Penas de Rodas, quando o tempo era bom e o ar estava limpo – como naquela tarde de outono. Lá embaixo, o rio (“aquele dos grandes destinos”), perdia-se nos poços do Piago e acalmava as suas presas entre as ilhas, nos remansos de Marcelhe.
Nos dias úmidos de inverno, depois de chover, Gaibor costumava ir até à Pena com os seus amigos, e lá deixavam-se escorregar pela sua superfície como se ela fosse um tobogã natural, até chegarem ao caminho que a contornava subindo da beira do rio.
Aproximou-se do Velho com precaução. Sentia um misto de medo e de atração fatal por ele.
Ia-o cumprimentar; já quase começara a dizer:- “As boas tardes Sr. Olegar”, mas interrompeu-o um murmúrio que saía da boca do Homem.
— “Caminhando, caminhando, caminhando
Vê-la-ai-vai a Santa Companha
A levar pelo Mundo a terrível
Espécie da “palavra.”
O Rapaz ficou paralisado, sem ousar avançar nem recuar. Mas não teve medo, porque sabia – tinha-lho contado a Sra. Rosalia, a vizinha de casa de cima - que a Companha não podia aparecer de dia.
O sol estava ainda alto, não se iria deitar por uma ou duas horas. Ele reagiu rapidamente e retomou o cumprimento que tinha iniciado:
— Boas tardes Sr. Olegar, que é o que está a ver?
— Olá Gaibor. Sabes bem que eu não vejo, pelo menos as coisas reais. Apenas enxergo as do espírito.
— Mas, então, o que é que está a cantar? Eu fiquei assustado quando lhe ouvi recitar aquele canto triste.
— E fazes bem ter medo. Todas as pessoas deveriam temer a Santa Procissão das ânimas. Sabes o que é a “Santa Companha”?
— A Rosália tem-me contado alguma cousa, mas não sei muito bem.
— A Santa “Companha” é uma procissão que anda pela terra, nomeadamente às noites escuras. Não gostam tanto do luar.
E voltou a cantar com a sua rouca voz a cantiga monocórdia:
“Destemido exército errante
A dançar pela Terra em redondeza,
A Música na cabeça
Uma dança macabra e emigrante”
O Gaibor sentiu um calafrio a percorrer-lhe as costas. Teve de se segurar nos calcanhares para não perder o equilíbrio. Mas a curiosidade podia mais que o medo e sempre quis saber mais alguma coisa. Olhou para o velho com aceno de esperar uma outra explicação.
— A Santa Companha são as ânimas do Purgatório que não têm repouso porque ainda não puderam entrar no Céu e, como estão irrequietas a espera de o poderem fazer, andam pelos caminhos penando. Levam fachos acesos para se alumiarem.
— E então, veem-se.
— Ai! Meu amigo, isso é que não convém.
— Por quê? - Quis saber o Gaibor, sentando-se à beira do Sr Olegar, e cada vez mais interessado, enquanto sentia crescer em seu interior aquela mistura de medo e de curiosidade.
— Porque a Santa “Companha” vai envolvida num ar frio. É um alento de purgatório que nem é do Inferno nem do Céu. O bafo do Inferno é quente, faz mesmo arder as silveiras, se uma fenda diabólica permíte-o sair das profundezas da terra.
“No entanto, o ar do Céu é como um vento de rosas, suave e rescendente como perfume. Quando uma pessoa tem a sorte de ser atingida por este último, é como se a felicidade lhe entrasse por todos os poros da pele.”
“Ora, há de quem for abafado pelo ar de purgatório! Essa pessoa já não irá mais viver entre os vivos. Mesmo que pareça um vivo, ele já não é, porque o seu corpo se há de tornar oco como a casca vazia de um ovo. Pode mesmo andar, e enganar os que olharem para ele, mas, como está vácuo, torna-se frágil e quebradiço, de tal modo que se irá esquartejar ao primeiro golpe. A mesma cousa que acontece com uma casca de ovo esvaziada. Eu já tenho visto as cinzas esfareladas de um alguém que, parecendo vivo, partiu, subitamente, em mil pedaços.”
— Ah! - O Gaibor não percebia muito bem o que o velho queria dizer, mas, como era um rapaz educado, ensinado a respeitar aos anciãos, acenou com a cabeça como se compreendesse.
E continuou, sentado á beira do velho, a fazer perguntas.
— E então, o que era aquilo que o Senhor cantava há pouco?
— Eu estava apenas a escorraçar a “Companha”. Porque, embora seja de dia, hoje à noite poderá vir passear por este Outeiro, pelo carreiro que há ao pé da Pena Patela. Estou apenas a advertir. Se alguém anda perdido pelos caminhos e lhe dá o ar frio da Santa Procissão, fica prendido em ela e já nunca mais volta para a sua casa. Desta maneira a Companha cresce nas noites escuras de névoa ou de lua nova, acrescentando mais um elo na cadeia de fachos que a formam.
"Com destino a nenhures
Alcança chegar a toda parte
Como mancha de azeite
Como seixos “rolantes.”"
O Gaibor escutou com espanto até não mais suportar. Começou logo a sentir um frio a subir dos pés às coxas, a lhe querer galgar pelo vão caminho do coração, embora, como ainda fosse novo, não soubesse com precisão onde é que o órgão se encontrava dentro de seu corpo. Um tremor começou a sacudi-lo, primeiro suavemente, e depois com algo mais de força. Fez um esforço grande para se erguer e levantar os sapatos do chão. Quando se viu com força e capaz de correr, disse ao velho, com voz aflita:
— Adeus Sr Olegar . Tenho de ir merendar á minha casa. Meu pai está à minha espera.
Um grito de chamada veio em sua ajuda.
— Gaibor!, Gaibor! Entra em casa que já é tarde!
O rapaz virou-se rapidamente, lançou um “boa tarde” apressurado e correu para onde seu pai o chamava.
Enquanto corria ouvia a voz profunda e rouca do Sr Olegar a cantarolar num tom de monocórdia e de salmodia :
“Lavradores incansáveis de caminhos
A marcar os vieiros com pegadas
De pés, engenhos e palavras”.
Essa noite, depois de jantar e fazer as tarefas das aulas, o Gaibor olhava da janela de seu quarto, sempre a pensar no Sr. Olegar. Da sua atalaia via-se apenas o fundo preto do Céu, naquela noite escura como breu.
No silêncio do dia que termina, quando as luzes se vão apagando e os lares adormecem junto com os seus moradores, o Gaibor ia sentindo como o som surdo e escuro da noite lhe premia o coração, ao passo que o cansaço lhe vencia. Deitou-se cheio de aquela mistura de medo e curiosidade que o invadira desde a conversa com o velho das barbas brancas que olhava a paisagem da Pena Patela sem a poder ver pelos olhos cegos.
Já o sono queria entrar pela porta dos pensamentos e ainda voltou escutar a voz profunda e rouca do Sr. Olegar, que salmodiava acompassado pelos golpes rítmicos do seu bordão a bater no chão:
“Caminhando, caminhando, caminhando
Já lá vem a Santa Companha:
Destino errante sempiterno
À procura do final imaginado
d'um caminho entre o Céu e o Inferno
Prendido nas cadeias do seu fado:
Andar sobre a terra e sobre as águas
Com o olhar posto na linha inalcançável
Do horizonte de risos e de “bágoas”
Com que vamos construir os nossos lares.
O Gaibor tapou-se com o cobertor até cobrir a cabeça. Depois embrulhou-se com os lençóis da cama. Dentro do seu leito ficou encolhido, e assim adormeceu e passou a noite inteira sem se mexer.
A luz do sol fê-lo acordar de manhãzinha. Já nada se lembrava do acontecido no dia anterior. O pai saíra cedo para o trabalho e ele tomou o pequeno- -almoço com o avô que o acompanhou até à paragem do autocarro da escola.
Só foi à tarde, quando voltou para casa, que lembrou o velho Sr. Olegar. Como ainda era dia e estava sol, pediu para ir brincar e apanhar umas pinhas para o lume da lareira. Foi logo para a Pena Patela, mal dissimulando uma louca ansiedade que lhe apertava no peito até quase fazer enjoar.
O Sr. Olegar não estava mais sentado na Pedra. Mas continuava lá a bengala branca que o homem levara na mão no dia anterior e, na sua beira, pelo chão, inúmeros cascalhos brancos, como de casca de ovo ou de ossos quebrados.
Gaibor sentiu uma rajada de vento vindo do caminho que subia do rio contornando a Pedra. Teve frio e voltou a correr para a sua casa, enquanto chamava pelo avô para lhe abrir a porta.
— E então sempre cansaste de brincar? Sei que não havia pinhas no pinheiral?
— Não avô, não eram pinhas o que havia. O que lá fica já não dá para fazer fogo. Tem tudo ardido.
O Pai e o avô olharam para o Gaibor de relance. O aspeto de preocupação que transcendia não dava para lhe fazer perguntas. Decidiram deixar o rapaz tranquilo e todos três puseram-se a preparar o jantar.
Gaibor ainda escuta, nas noites nevoentas da invernia, uma voz que salmodia “
Caminhando, caminhando, caminhando
Velai vem a Saanta Cooompaanhaa.
EPÍLOGO:
Agora o Gaibor já nunca mais tem medo de ser apanhado pelo ar frio do purgatório que expelem as ânimas.
O seu pai e o seu avô disseram-lhe que o purgatório não existia nem tampouco o inferno. Que o céu aparecia sempre que a gente estava contente, e era feliz o que acontecia com frequência na vida do Gaibor.
O Sr. Olegar está no lar de idosos. O pai do Gaibor conseguiu-lhe lá um lugar, porque, para além de ser ceguinho, não tinha família que o cuidasse.
As enfermeiras ralham com ele todos os dias porque tenta contar-lhes histórias da Santa Companha e pretende meter-lhes medo sob a ameaça de que uma noite de geada e névoa vão ser apanhadas pela procissão das ânimas. E seu corpo converter-se-á numa casca de ovo vazia.
Entretanto, canta os seus versos como uma ladainha que semelha uma premonição:
“Caminhando, caminhando, caminhando
Já lá vai a Santa “Companha”
A levar pelo mundo a terrível,
“Cruel especie da palavra.”
Espécie, em fim, a invasora da Terra,
Gente, Seres Humanos.
Nota: A Pena Patela existe na realidade no Lugar de San Martinho de Outeiro de Rei, nas beiras do Rio Minho , a poucos quilómetros de Lugo. Também existen as Penas de Rodas e os outros lugares citados neste pequeno relato.
É possível tambem que exista ou tenha existido o Sr Olegar. Com certeza que a Santa Companha existe. Eu vi-a numa noite de inverno, mas não me apanhou por estar eu agachada por tras duma sebe de buxo.
Adela Figueroa Panisse