quarta-feira, agosto 01, 2012

A décima ilha dos Açores - Codex Calixtinus (IV)

Eis o último episódio da história do Códex Calixtino andarilho: quem o queira procurar, já sabe, na décima ilha dos Açores, debaixo de um castanheiro - o da televisão é vigarice. 

Nas nossas conversas da tarde eram frequentes as perguntas sobre o que havia ao atravessar o rio, pois o chefe nos dissera que era um lugar perigoso ao que não devíamos ir. Tínhamos muita curiosidade por ver aquela parte da ilha e uma tarde decidimos ir ao outro lado do rio com uma pequena barca que fizera o Diogo.

Mas a pequena embarcação não resistiu as descargas elétricas das moreias e acabamos todos na água, molhados e com queimaduras causadas pelos peixes elétricos. Havia uns meninos a brincar à beira do rio e foram procurar umas pessoas que nos ajudaram a sair e nos levaram ao castro do chefe para que nos curasse as feridas. O chefe já sabia que tentáramos passar para o outro lado, mesmo se ele nos prevenira do perigo. Por isso nos contou a historia do que acontecera há muito, muito tempo:

“Há dois mil anos, quando nós chegamos aqui, a ilha estava dividida em duas partes: uma parte de floresta que ainda existe hoje e uma parte de areia, na qual não havia nada. Na parte deserta decidimos pôr as montanhas que trouxemos de Lugo, os nossos animais e plantas, as praias da Galiza, e construímos uma aldeia igual à que deixamos atrás.

Depois de armar o nosso novo assentamento, alguns homens novos foram caçar à selva, mas não encontraram nenhum animal, só espíritos. Os espíritos tinham um corpo como o nosso, mas a pele era mais escura e tinha riscas brancas, e no lugar donde deveria estar a cabeça, havia madeira, flores e lume!

Os espíritos dançavam, cuspiam lume e os nossos homens voltaram para a aldeia assustados. Os caçadores caminhavam para o assentamento e os espíritos vinham por trás deles, mas enquanto os espíritos tentaram atravessar o rio, as moreias produziram eletricidade pela primeira vez, e eles não puderam vir ao nosso lado. As moreias foram possuídas por um espírito bom que nos protege dos espíritos malvados do outro lado desde esse dia.”

Nós escutamos a historia com atenção e respeito, mas não demos crédito. Espíritos malvados, moreias que salvam guerreiros... não haveria outra maneira de explicar o que acontecera? Pensamos muito na historia que nos contara o chefe, no que nos acontecera a nós e no que se falava na aldeia, e com a ajuda dos conhecimentos de Antropologia da Ana e dos de Biologia da Valéria e da Andreia criamos a seguinte hipótese: os espíritos malvados eram ilhéus nativos, de pele escura pintada às riscas, portavam máscaras de madeira e flores, e estavam a fazer algum ritual quando chegaram os novos habitantes. Os nativos surpreenderam-se ao ver pessoas que não conheciam e perseguiram-nos até ao rio, onde as moreias produziram eletricidade por primeira vez por causa duma modificação genética.

Agora que tínhamos uma hipótese, o nosso maior desejo era ir ao outro lado do rio saber se era certa ou não. Sabíamos que não chegaríamos através do rio porque as moreias elétricas destruiriam a embarcação, mas encontraríamos outra maneira de chegar. Perguntamos na vila se alguém sabia como ir à selva, mas ninguém nos quis ajudar porque tinham medo dos espíritos.

Felizmente, a Andreia e a Valéria fizeram-se amigas, se calhar demais, de dois jovens caçadores que lhes disseram que podiam chegar ao outro lado atravessando as montanhas. Todos queríamos ir à selva, mas alguns devíamos ficar para não fazer suspeitar os ilhéus que íamos visitar os espíritos malvados e pensassem que nós também éramos maus. Decidimos que fossem a Andreia e a Valéria, pois eram as que melhor se entendiam com os caçadores, mais o Telmo, que costumava caminhar pelas montanhas e saberia como se mover.

Saíram uma manhã cedo, antes que se levantassem os habitantes da aldeia, e subiram a montanha. Por volta do meio-dia já estavam no cume, donde podiam ver formosas escarpas, árvores desconhecidas, aves de cores... e ao longe via-se uma pequena aldeia de choças com tetos de colmo. Seria certa a sua hipótese?

Impacientes, desceram a montanha correndo, e logo chegaram à aldeia, onde havia meninos brincando, jovens a plantar, mulheres a falar, etc., mas ao ver as novas pessoas, todos ficaram quietos e calados. Tentaram falar com os nativos, mas eles não compreendiam  a nossa língua, não sabiam o que fazer quando uma mulher jovem e muito bela foi junto do Telmo. Olharam-se nos olhos e algo mágico aconteceu, ninguém sabe o que, mas desde essa mirada o Telmo compreendia todo o que a nativa lhe dizia, só com olhá-la nos olhos. A Andreia, a Valéria e os caçadores voltaram para a aldeia dos castros para contarem a sua aventura, mas o Telmo quis ficar lá, junto à nova mulher que conhecera.

Depois do retorno de todos sem o Telmo, as coisas aconteceram muito depressa.

O chefe da aldeia chateou-se muito mesmo, pois ele não tinha autorizado a expedição, mas ao descobrir a existência da outra aldeia ficou muito contente; começaram assim as duas povoações a fazer amizade. Os ilhéus eram felizes porque eram mais numerosos e andavam a ajudar-se uns aos outros.
   
A Ana terminou o plano do hotel sem ajuda do Telmo, pois ele começara uma nova vida junto a Riheca (a garota da outra aldeia) e não queria ouvir falar de voltar para a Galiza.

Na mesma, a Andreia e a Valéria, no seu propósito de libertar o golfinho prisioneiro da lagoa, descobriram um canal que comunicava com o oceano, o que justificou a existência de peixes marinhos lá. Todos ficamos sossegados, o golfinho não estava prisioneiro.

Quando o Diogo acabou de reparar o barco, era tempo de tornar para casa, para a Galiza.
   
No fim, a Valéria e o Telmo decidiram ficar na ilha até nós voltarmos lá. Já na Galiza, eu, a Ana, a Andreia, o Diogo descobrimos que o Codex Calixtinus ficara esquecido na ilha ao pé dum castanheiro.



A ideia inicial de mostrar a ilha o mundo já não fazia sentido, pois o seu encanto estava em ser desconhecida para as demais pessoas.

A nossa vida na Galiza continua sem muita dificuldade, mas nas férias costumamos navegar à procura da ilha. Por mais que sigamos os passos de São Brandão, de maneira nenhuma voltamos a encontrar a décima ilha dos Açores, e a tristeza toma conta das nossas vidas por não termos ficado lá, na nossa ilha. 






A ARTE DO DIZER

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