quarta-feira, fevereiro 06, 2013

Sulcos de Amor no Tejo


 Texto: Fran, 1º de intermédio. 
Fotografia: Gérard Castello Lopes

Gosto de entrar devagar, respeitando escrupulosamente, a processional fila de pessoas que sobem a diário no sempiterno cacilheiro. Mas eu não me acho contente entre a multidão e procuro um lugar solitário na proa do barco. Porque sabe que é assim como me libero, Catarina. Fecho os olhos, respiro profundamente e pego a sua mão, como todos os dias. Ali, ao teu lado, posso sentir em meus outonais cabelos o vento, "quase mareiro", que me transporta aos tempos dos grandes descobridores portugueses. Sou assim um vigia sob o comando de Vasco da Gama, atento ao aparecimento da terra desconhecida além do Tejo.


Lembro-me, ainda fresco, cara Catarina, o primeiro dia em que te vi no cacilheiro. Tu estavas em pé, nesta mesma proa. Eu coloquei-me detrás, olhando como com o índice debuxavas caracóis nos teus cabelos, enquanto lias encobertamente, mexida nos fortes braços do rio, O Capital, de Karl Marx.

Foi assim como que te fitei pela primeira vez e sem tu saberes. Naquele dia, finalizado o trajeto, desci do barco com o único desejo de te ver na próxima viagem.

Demorei meses a me decidir a falar-te. Até que um dia te abordei, como pirata corajoso, decidido já finalmente a enfrentar o seu destino de morte ou vida. E vida acabou por o que encontrei.


Foram anos luminosos, um raio de luz nas trevas. Temporadas de secretos comícios e reuniões clandestinas em que pregavas com afervoramento a necessidade de lutar por uma mudança democrática. Mas a liberdade cobra sempre um tributo. O teu pagaste-o sobejamente...


Eu regressava a casa com um grande sorriso pela minha ascensão no trabalho. Mas o meu rosto foi desligado porque não te achei lá, como esperava. Só vi a mobília revolta, papéis no chão... Rapidamente corri até aos quartéis da malfadada PIDE. Gritei desesperado, bati em suas portas até que o sangue inundou os meus cotenos. Após alguns minutos de angústia, um polícia abriu. Perguntei por ti, Catarina, e a resposta da PIDE tornou-se no teu corpo pequenino, de alma invencível, magoado, desfeito, sem vi...


O apito do barco acorda-me do meu pesadelo e anuncia a chegada ao meu destino. Passo hoje, 25 de abril, em baixo da Ponte que leva o nome deste redentor dia. Uma Ponte que nunca verão os teus olhos, mas que ajudas-te a cimentar com o teu sangue.


Agora, envolvido pelo apito surdo do cacilheiro, com as lágrimas a percorrer as bochechas, livro um cravo, junto a um: “quero-te”, que sai do meu coração, enquanto vejo o teu reflexo nas águas do Tejo, águas que viram nascer o nosso amor. 

A fotografia é de Gérard Castello Lopes. Foi tirada da seguinte fonte: 

A ARTE DO DIZER

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