Texto: Fran, 1º de intermédio.
Fotografia: Gérard Castello Lopes
Gosto
de entrar devagar, respeitando escrupulosamente, a processional fila
de pessoas que sobem a diário no sempiterno cacilheiro. Mas eu não
me acho contente entre a multidão e procuro um lugar solitário na
proa do barco. Porque sabe que é assim como me libero, Catarina.
Fecho os olhos, respiro profundamente e pego a sua mão, como todos
os dias. Ali,
ao teu lado, posso
sentir em meus outonais cabelos o vento, "quase mareiro",
que me transporta aos tempos dos grandes descobridores portugueses.
Sou assim um vigia sob o comando de Vasco da Gama, atento ao
aparecimento da terra desconhecida além do Tejo.
Lembro-me,
ainda fresco, cara Catarina, o primeiro dia em que te vi no
cacilheiro. Tu estavas em pé, nesta mesma proa. Eu coloquei-me
detrás, olhando como com o índice debuxavas caracóis nos teus
cabelos, enquanto lias
encobertamente, mexida nos fortes braços do rio, O
Capital,
de Karl Marx.
Foi
assim como que te fitei pela primeira vez e sem tu saberes. Naquele
dia, finalizado o trajeto, desci do barco com o único desejo de te
ver na próxima viagem.
Demorei meses a me decidir a falar-te. Até que um dia te abordei, como pirata corajoso, decidido já finalmente a enfrentar o seu destino de morte ou vida. E vida acabou por o que encontrei.
Foram anos
luminosos, um raio de luz nas trevas. Temporadas de secretos comícios
e reuniões clandestinas em que pregavas com afervoramento a
necessidade de lutar por uma mudança democrática. Mas a liberdade
cobra sempre um tributo. O teu pagaste-o sobejamente...
Eu
regressava a casa com um grande sorriso pela minha ascensão no
trabalho. Mas o meu rosto foi desligado porque não te achei lá,
como esperava. Só vi a mobília revolta, papéis no chão...
Rapidamente corri
até aos quartéis da malfadada PIDE. Gritei desesperado, bati em
suas portas até que o sangue inundou os meus cotenos. Após alguns
minutos de angústia, um polícia abriu. Perguntei por ti, Catarina,
e a resposta da PIDE tornou-se no teu corpo pequenino, de alma
invencível, magoado, desfeito, sem vi...
O
apito do barco acorda-me do meu pesadelo e anuncia a chegada ao meu
destino. Passo hoje, 25 de abril, em baixo da Ponte que leva o nome
deste redentor dia. Uma Ponte que nunca verão os teus olhos, mas que
ajudas-te a cimentar com o teu sangue.
Agora, envolvido pelo apito surdo do cacilheiro, com as lágrimas a percorrer as bochechas, livro um cravo, junto a um: “quero-te”, que sai do meu coração, enquanto vejo o teu reflexo nas águas do Tejo, águas que viram nascer o nosso amor.
A fotografia é de Gérard Castello Lopes. Foi tirada da seguinte fonte: