A Pilar Sánchez Monje, do Avançado 1, inaugura a coletânea Relatos de Viagem que nos permitem perscrutar um poucochinho mais do Brasil.
Obrigadão, cara!!!
Uma viagem brasileira
Agora, quando todos dormem é quando posso ficar tranquila no meu quarto. Agora, posso falar-vos de Maria Eduarda.
Há um ano que a companhia francesa de teatro e música Jo Bithume me requereu para fazer com eles uma tournée pelo Brasil. Esta aventura nasceu do sonho do seu grande diretor Jacques Dolivet que adorava o país depois de uma visita que fez há quinze anos.
A ideia tinha uma parte de maluquice, porque, embora eles tivessem os concertos fechados com vários teatros e, a parte mais importante seria da viagem livre, selvagem, à procura das pessoas nas cidades,.... ao encontro dos problemas (dizia para mim própria). Para os músicos era uma questão de jogar pelo prazer de jogar, para voltarem à razão primitiva da sua profissão: o contato direto com o público, do auditório, enquanto que para mim porém a ideia tinha os ingredientes necessários para eu querer experimentar, também se acrescentava uma sensação de cautela.
Nesta altura levávamos quase um mês no país tropical, mais não teríamos chegado até aqui se não fosse pela mágica aparição de Maria Eduarda.
Um dia, depois de andarmos pelo estado do Pará, chegamos a Itacoatiara, no Amazonas. A cidade é um importante porto fluvial, e como boa cidade portuária, as pessoas eram boas negociantes e conversadoras. Uma maravilhosa miscigenação alargava-se pelas avenidas, lojas e cafés.
Alugámos vários quartos na Avenida Sete de Setembro, perto da Praça da Matriz onde se celebrava o Festival da Canção. Cedo andámos para o escritório do concurso para nos podermos inscrever. Porém, quando retornámos, topámos o prédio completamente em chamas. Alguns dos músicos conseguiram tirar alguns instrumentos e algumas malas, mas a maior parte das coisas do espetáculo estava a arder e com elas a nossa esperança de participar no Festival e ganhar algum dinheiro para atingirmos a nossa meta: O grande Teatro Amazonas de Manaus.
O cansaço dos dias, dos ônibus às pressas, das sujas estalagens, dos esforços por cuidar de dezoito pessoas cada vez mais desiludidas, caiu sobre mim como uma lousa. Afastei-me do grupo para chorar sem ser vista quando um som começou a se levantar por cima do barulho dos bombeiros. O som quente de uma viola caipira advindo à voz atraente de uma moça pequena, mulata, de olhar ausente atrás de uns óculos grossos como vidro de copo. Completamente sozinha, sem auditório, -as pessoas estavam a olhar para o fogo -. Ela apurava-se em manter a harmonia da sua voz longe da dura realidade da cena, em construir uma bolinha de sabão no médio da trovoada. Isso me fascinou e como os ratos com o Flautista de Hamelin, todo o grupo se aproximou da cantora esquecendo a chatice, a fraqueza e as preocupações pelo perdido. Foi o feitiço da simplicidade da Maria Eduarda que nos devolveu, como um soco, à razão da nossa viagem. Todas as nossas dificuldades não eram nada se comparado com a vida desta moça quase invisual, moradora de rua, ardina ocasional que conseguia afastá-lo tudo para nos oferecer o grande presente de quem nada possui: a sua música.
Desde esse momento não nos separámos dela. A companhia desenhou um novo espetáculo, sem artifícios, simplesmente pelo prazer de jogar, onde se incluiu à Maria Eduarda, e estivemos prontos para o Festival.
O resultado? Isso já é outra história.