sábado, maio 21, 2011
OS DESENHOS E OS CORPOS DANÇANTES
Eu acordei como sempre. Os meus olhos preguiçosos, bocadinho a
bocadinho, foram abrindo-se para a manhã, e ficavam imóveis para o
espaço nu mas somente vazio até quando eles receberam o esquisito
fenómeno.
Eu, sem mexer-me, sob os cobertores, olhara dia trás dia sem perceber
o processo. Corpos estranhos, diminutos, apareciam e desapareciam nos
limites dum estreito e cumprido raio de luz. A janela, fechada, era
incapaz de deter a invasão. Corpos miúdos, em pedaços e aboiando em
oblíquo. Milhares deles de origem desconhecida. Corpos magros,
dançantes, estranhos moradores num quarto pequeno, somente ocupado
pela cama, a mesa de galo e a velha cadeira agasalhada pela roupa,
perto da porta também fechada.
Eu fiquei imóvel, a olhar para eles, como todos os dias, mas algo não
se repetia como sempre. Permaneci hipnotizado pela dança dos
microcorpos, cada vez mais perto de mim, mas não ouvi os ruídos da
cozinha. Não ouvia o barulho de todas as manhãs. Nenhuma voz, nem a da
minha mãe nem a da minha avó. Fiquei preocupado, desci um bocadinho
mais sob as mantas e olhei para o teto. As bocas cresceram desde o dia
anterior à noite. Os olhos, cada vez maiores, queriam chegar até ao
colchão, trespassando-me. O espaço vazio de proteção diminuía. Os
dentes e as garras dos animais caíam da madeira do teto e pairavam
devagarinho no ar, fazendo uma viagem para onde eu permanecia imóvel,
apenas protegido pela roupa da cama.
Eu desci e desci para a obscuridade do interior, por entre os lençóis
e os cobertores. Mas eu continuei a perceber como as bestas selvagens
se achegavam, percorrendo o espaço que pendurava do teto. Percebi,
sem vê-los, os seus deslocamentos desde as quatro esquinas. As
criaturas mexiam-se pela velha madeira de castanho, e já juntas no
centro geométrico do quarto, iniciavam a viagem para abaixo, ficando
eu como objetivo, como primeiro e derradeiro alvo da sua caçada.
E à minha beira as criaturas dançantes aproximavam-se. A janela,
completamente fechada, não impedia as vagas dos corpinhos, infinitas.
Já trespassaram as pequeninas defesas do cobertor, e começaram a
superar a derradeira opção de resistência dos lençóis, preparadas para
se inserirem definitivamente na minha pele e no meu organismo. A
porta, completamente fechada, impedia a fugida. Bocadinho a bocadinho,
a coluna de microcorpos girava e invadiam a cama. As bestas
agasalhavam-me com o seu bafo. E eu, como força final de resistência,
agarrava o travesseiro entre braços e pernas, como escudo colado ao
meu magro corpo. Inútil estratégia.
Acordei com o ruído, fiquei imóvel, reconhecendo o espaço e o tempo
familiar. Olhei para o teto. Ali estavam: o leão, o cão, aquele nariz
muito comprido. As nuvens, desenhadas pelo tempo e a humidade,
espalhavam-se ocupando toda a madeira do velho teto.
Virei a cabeça para a janela. Ali permaneciam as minhas pequenas
brincadeiras a flutuar no ar, no eixo em que o sol atravessava a
janela. Corpinhos de pó que todos os dias dançavam para mim.
E, por fim, o pequeno almoço a subir pela escada, e as vozes da minha
mãe e da minha avó, já tarde, na manhã de verão, como sempre.
domingo, maio 15, 2011
BELÉM DO PARÁ
Maria Luz Núñez Gómez
2º ano de nível avançado.
Belém do Pará, rua Travessa Dom Romualdo de Seixas, 374, Umarizal. Lá estava eu ao balcão, a beber um café. Na noite passada deitara-me muito tarde em procura da pessoa que tinha na fotografia. Não tivera sucesso. Voltei a apanhar o café e quando ia beber... Era ELA. Acabava de passar pelo passeio. Pedi a conta e saí do bar. Onde é que estava? Acabava de passar por lá, mas agora não a encontrava. Se calhar foi uma imaginação, de tanto ter pensado nela toda a noite. Mas acho que não. Comecei a correr, mas o esforço não serviu para nada. Pensei em tudo o que se tinha passado no dia anterior: por volta das 10 horas um homem chegou ao meu escritório para me dizer que a sua mulher tinha desaparecido havia uma semana. A polícia não conseguia encontrá-la. E foi então que leu no jornal: “Paulo Guimarães. Pesquisador privado. Avenida Almirante Barrosso, 54, 645-362-254.” Telefonou-me e combinámos às dez horas. Chegou na hora exata. O seu relato foi muito simples: não sabia onde é que estava a sua mulher.
- Se calhar, ela quis fugir - disse eu.
- Não - respondeu ele. Há muito pouco tempo que casámos e estamos muito contentes.
Não tinha muito trabalho, pelo que concordei em procurá-la. Apanhei as fotos e - quando o homem foi embora - saí para a rua.
Passei todo o dia à sua procura mas não tive sucesso.
É por isso que hoje estava muito estafado e entrei no bar. O que se passou a seguir já sabem.
… E lá estava na rua sem saber o que fazer. Mas nesse momento foi quando vi a luz: a mulher costumava apanhar o carro e passear pela floresta. Fui nessa direção. O carro estava lá, no rio. Com certeza tivera um acidente. Mas ela não estava lá. Por um lado era lógico: havia oito dias do acontecido, mas onde é que estava?
E foi aí que escutei: “Paulo, Paulo, levanta-te, ou vais chegar tarde ao liceu”.
terça-feira, maio 10, 2011
Trancoso
Ramiro Álvarez Fernández
As sardinhas eram doces: não eram de mar, mas de confitaria. Não tão saborosas como o bodo de arroz das manhãzinhas, mas foram o indicador de estarmos em Trancoso.
A porta estava aberta. A não estar, eu não ousaria entrar naquela fortaleza. Tanta pedra, tanto esforço guerreiro pelo adarve, tanto ruído de lutas acabadas há muitos séculos…
No largo da Câmara Municipal, o Bandarra tranquilizou-me. O seu pé plantado na pedra, os braços sobre o joelho e o semblante de comunicar que não há pressa; o Rei D. Sebastião há de voltar e a história seguirá o seu percurso. Entretanto, para que preocupar-se, para que afanar-se se o mundo nao é mais do que uma miragem?
Obrigado, Bandarra.
Da igreja passei para o bairro judeu: o poço da água que tira a sede para sempre (ou seriam as águas do esquecimento?), as casas de pedra e os inevitáveis cães que mesmo não olham para um, como para fazer-lhe ver a sua insignificância neste pedaço de história que é Trancoso.
E lá, no cume, o castelo; a torre de menagem, que castelo é toda Trancoso. A vertigem da subida, a carícia da aragem no alto. Não há inimigos à vista. Podemos regressar.
Uma Coca Cola no largo da igreja. Não são as águas que tiram a sede para sempre nem as do esquecimento perpétuo, mas está mesmo boa.
O que fará um “multiusos” de aspeto ultramoderno contrapondo a sua insolência à venerabilidade das pedras do castelo? E, aliás, ao pé da capelinha que comemora o casamento da rainha Santa Isabel com um rei de Portugal (ele me perdoe a minha ignorância do seu Nome).
E, ao pé da capela, como um milagre, a história dos grelos à pobre, contada pela mulher que recebeu parabéns por viver numa terra tão formosa, quando a tal não era a sua terra; que vivia da ilusão do espanhol que lhe iria comprar a casa, que não acaba de chegar e que, por não ter vesícula, não pode gostar da sua própria receita dos grelos à pobre.
O autocarro: fotos e fotos de muralhas, pedras, terras, gentes… se fosse verdade que nas fotos fica presa a alma do retratado…
Ou, tal vez, foi minha alma a que ficou por Trancoso, a experimentar os grelos…
quinta-feira, maio 05, 2011
MANAUS (Macrorrelato)
Emilio Carral (1º de avançado)
A rua cheia de gente. O sol hoje nascera muito cedo – porém, não acordara com a força da primavera amazónica. Decidi levar o chapéu na mão e desci pela avenida Eduardo Ribeiro. Queria chegar ao bar Caldeira, onde o meu amigo Afonso me esperava às quartas e às quintas, muito cedinho, diante do café preto da senhora Caldeira. Um café de espessura e cor muito parecida com a da borracha já aquecida, longe da sua mãe seringueira.
Deixei o meu prédio perto da rua Ramos Ferreira e fiquei a olhar para adiante. Não tinha certeza de querer atravessar a Praça do Congresso. Não ficara terminada, e a terra e o cimento invadiram o ar. Decidi virar à direita, visitar o bar França Cipriano, e beber o primeiro copo de aguardente olhando para a pequena Praça da Saudade.
Bom dia, Cipriano.
Boa manhã, senhor arquiteto. Hoje é o dia.
Com certeza, amigo Cipriano.
Mas necessitava o copo, partilhado com o Cipriano, para ter a certeza completa. O Cipriano encheu o copo com água de cana até à metade, e depois deixava cair, devagarinho, a água fresca e transparente do Amazonas. A água borbulhava em contacto com o álcool, e ficava no fundo sob o nevoeiro formado, para depois ascender, mexer-se por todo o volume do copo, e desaparecer completamente.
Eu peguei no copo, e o Cipriano no seu, com mais Amazonas do que cana.
Que não caia – dissemos os dois.
Os copos ficaram vazios em cima da madeira avermelhada do balcão.
O adeus ficou pendurado na porta e, já decidido, desci pela Avenida Ramos Ferreira até à Praça do Congresso. Mas quando estava a descer em direção ao velho forte de São José da Barra, fiquei parado. A primeira Avenida do Velho Lugar da Barra, que ocupara o antigo pântano, parecia prestes a deixar escapar as bolhas de gás presidiárias da obra do homem. Mau sinal.
Olhei para o céu, e o sol não acordara como nos outros dias da primavera. Não tive a certeza de que fosse o dia próprio. Mudei o pensamento, mudei a direção, e entrei na rua Coutinho, longe do destino imediato. Alonguei o passo para a Dez de Julho, sob a sombra da borracha virgem e oculta, até chegar à esquina com a José Clemente.
Na quadrícula perfeita das ruas, as palmeiras caribenhas substituíam as seringueiras. As flores pequeninas, as folhas múltiplas de um verde brilhante e com fortes nervos, e que faziam companhia aos prédios de dois andares, foram trocadas pelas palmeiras magras, compridas, e de pouca largura, que deixavam as janelas nuas.
Quanto eu tinha falado com o arquiteto da Prefeitura a respeito da mudança da paisagem urbana! Se calhar a excessiva altura da palmeira, se calhar o incómodo e impróprio dos frutos no chão, mas a Prefeitura decidiu seguir adiante. Quem resolveu foi o Vereador, o senhor José Henriques de Mato Cunha Campos, dono do maior negócio de importação-exportação de plantas para jardim do Amazonas.
Eu segui em frente sob a sombra extraterrestre da Palmeira das Caraíbas. Quando abri a porta do Bar Caldeira, ao final da rua, noutro ponto da quadrícula urbana de Manaus, já Afonso estava sentado na sua cadeira de todos os dias, por trás da mesa, segurando a parede com o lombo, deixando o vapor do café flutuar sob os seus pequenos e metálicos óculos. Eu sentei-me. Afonso levantou os olhos sem mover a cabeça, aspirou o ar quente, e ficou novamente a olhar para a xícara.
A senhora Caldeira deixou à minha frente outra chávena idêntica, com o mesmo fume e o mesmo cheiro, sob a minha barba de quatro dias. Eu também fiquei a olhar na mesma direção, mas estava a ver uma taça de borracha espessa e dura.
- Chiça -, eu disse. Mas depois de dois segundos, um intenso raio de sol iluminou a mesa. A borracha desaparecera e o formoso café aparecera. O sol acordara e o Amazonas e Manaus voltaram. Eu e Afonso engolimos e levantamo-nos, vestimos os nossos chapéus, e o Afonso colocou os olhos no nariz. Ficamos parados na porta. Olhamos para o céu, e ali estava: o bom sinal, o sol de todas as primaveras amazónicas. Saímos para a avenida Eduardo Ribeiro.
Começamos a vê-la pela parte de atrás, não pela entrada principal. Tenhamos medo da surpresa. Ali ficava a apanhar todo o sol que hoje, com muita preguiça, acordara um bocadinho tarde. O sol agasalhava-a com certeza, mas ela refletia com segurança raio a raio. Continuamos pela avenida, paralela ao edifício, já a estrada estava livre de seringueiras.
Chegámos à Praça de São Sebastião e à sombra do monumento à Abertura dos Portos, sob o braço da Mulher de Pedra, molhando-nos com as ondas sonhadas do chão, e no centro das seringueiras, olhamos definitivamente para o nosso destino. A grande cúpula do Teatro Amazonas. A minha obra, a obra do português, e a do meu amigo Afonso. A cúpula presidia ao edifício da Ópera, a praça e as seringueiras cheias de látex virgem, que tanto ajudara na sua construção, quando fora transformado na muito apreçada borracha. Afonso tirara o chapéu, agora tirou os óculos, e do seu magro e muito comprido corpo, abraçou-me. A nossa grande obra, pronta para a inauguração, já estava a fazer parte da Amazónia.