Um
muito obrigado à Maryluz
Otero
do Avançado 1
por nos deixar ler um bocadinho do
seu caderno de viagens pelo Brasil.
São
Paulo, oba !!!
Beleza,
cara...
CHAMAM-ME
DE DONA IVONE.
Ainda bem que acordei com tempo suficiente para aperceber-me de que, mais outra vez, a tragédia prometida durante o sono não se tornou realidade. O meu parceiro de viagem espatifado no chão do avião durante a aterragem de emergência, destripado e aleijado de por vida sem remédio. Eu fico lá, estagnada e muda, enquanto o médico de serviço deita um lençol branco sobre o cadáver, e fala qualquer coisa quanto a hora do óbito.
Tudo bem!, penso. Após trinta anos de carreira, não consigo que os nervos prévios ao dia do concerto sumam... Ainda bem!
Carrego com o meu colega até à saída. Os dois somos cumprimentados pela hospedeira de bordo. Ele fica calado dentro do seu estojo de violino. Eu respondo:
-Merci! - como a minha mãe me ensinou, se bem que ela não seja brasileira mas francesa, e conquanto agora me encontre na cidade de São Paulo e não em París. Ainda bem que reparei! Agora é só pegar na minha mala e, logo a seguir, apanhar um táxi até o Teatro Municipal.
O taxista trava o carro perante um edifício de estilo inglês, com um grande relógio. A Estação da Luz. -Bonito, né?- diz ele. Ainda bem que não estamos em Londres! Já na Avenida de Ipiranga o homem aponta para um enorme arranha-céus. - Alto, né?- fala.- O edifício Itália, um ícone da cidade! - Última parada: Praça Ramos Azevedo. Pago a corrida e entro, atrassada, no hall do Teatro. As pinturas do teto, os vitrais, mesmo o vermelho do estofo das cadeiras... tudo muito requintado; alguém apurou-se em que a imagem da Ópera de París estivesse presente com apenas uma vista de olhos...
Tudo a postos?...O ensaio foi ótimo e não demorou muito, o tempo necessário para que a minha barriga começasse a dar horas, e a minha mente imergisse na ementa do Café do Teatro antes de a ter nas mãos. A garçonete aproxima-se da minha mesa. É uma mulher alta, de cabelo encaracolado e um sorriso doce e branco de comercial, que destaca sobre a sua pele negra. Não mais de cinquenta anos, ela; e no mínimo dez, os seus sapatos de salto azuis cor-de- mar. O burburinho da sala cessa antes de que possa pedir as coxinhas de frango picantes. Três moleques armados entram e fico no chão.- Ninguém se move, valeu?- Começo a ser consciente do assalto quando, baixinho, a garçonete que caiu perto de mim me diz:
-Qual é o seu nome?- Juliette, respondo.
- Eu sou a Berenice, embora todos me chamam de Dona Ivone, diz que sou parecida com a cantora, sabe? Um dos rapazes dá uma pancada ao primeiro violoncelista, e quase ao mesmo tempo começo a lembrar... Lembro quando ganhei a minha vaga na orquestra, e fui eleita entre mais de duzentos candidatos do melhorzinho dos conservatórios da França. Foi o dia mais feliz da minha vida..., depois do nascimento do meu Guillaume, claro. Dona Ivone lembra seu primeiro dia de trabalho no Teatro com dezassete anos, e o rosto do seu pai enquanto ela segurava sua mão para deter o soco antes de ir embora. Foi o dia mais feliz da sua vida..., depois do nascimento do seu filho João, claro. Recorda-se também de um esposo que sumiu numa garrafa de uísque nalgum boteco de SP, e eu doutro que sumiu nos braços de uma flautista de vinte e tal, de nome Céline. Dona Ivone faz pedidos a um tal Ogum; e eu penso num mar em calma, e num bosque cheio de pássaros, e no vento que zoa lá fora, e em por que diabo eu teria pago tanto dinheiro ao meu psiquiatra por umas terapias de merda que não servem para nada...! Umas sirenes ouvem-se na rua.
-Ainda bem que a polícia já chegou, a gente se salva, fique tranquila! -comenta Dona Ivone. Os rapazes falam entre eles, mas não consigo perceber bem. -Os homens vão atirar, vam´embora! -Hesitam um momento, aproximam-se da porta, e um barulho de balas e vidros envolve tudo...
Três corpos ensanguentados ficam à entrada do edifício. Cinco policiais a suar em bicas, retiram mais outro numa maca, dantes da chegada dos médicos-legistas. Os homens deixam-na no chão para recuperar o fôlego. Ainda bem que um lençol branco garante a intimidade do corpo! Apenas uns sapatos azuis cor-de-mar ficam à vista.
No noticiário o jornalista Filipe Silva interrompe a emissão para ligar com a repórter Ana dos Santos.
-Mais outro exemplo da violência dos nossos dias, Filipe!... Três homens muito bem armados entraram no Teatro Municipal hoje de manhã, retiveram as pessoas que lá estavam e mesmo espancaram várias delas, que precisaram assistência médica. Dada a perigosidade dos assaltantes e a sua negativa a se renderem, a Polícia Militar de SP viu-se obrigada a abrir fogo. Os malandros caíram abatidos pelas balas, porém não foram só eles. Conquanto até o momento a informação seja confusa, Filipe, pudemos saber que uma mulher, funcionária do Teatro, também resultou morta...
-Ok Ana, se houver alguma novidade...
-Desculpa Filipe..., é mesmo agora que conhecemos a identidade de uma nova vítima. É uma mulher, loira, de uns cinquenta anos e nacionalidade francesa. Ao parecer, era pianista de profissão, muito celebrizada no seu país. Sem dúvida, uma grande perda para o mundo da Música...
Ainda bem que acordei com tempo suficiente para aperceber-me de que, mais outra vez, a tragédia prometida durante o sono não se tornou realidade. O meu parceiro de viagem espatifado no chão do avião durante a aterragem de emergência, destripado e aleijado de por vida sem remédio. Eu fico lá, estagnada e muda, enquanto o médico de serviço deita um lençol branco sobre o cadáver, e fala qualquer coisa quanto a hora do óbito.
Tudo bem!, penso. Após trinta anos de carreira, não consigo que os nervos prévios ao dia do concerto sumam... Ainda bem!
Carrego com o meu colega até à saída. Os dois somos cumprimentados pela hospedeira de bordo. Ele fica calado dentro do seu estojo de violino. Eu respondo:
-Merci! - como a minha mãe me ensinou, se bem que ela não seja brasileira mas francesa, e conquanto agora me encontre na cidade de São Paulo e não em París. Ainda bem que reparei! Agora é só pegar na minha mala e, logo a seguir, apanhar um táxi até o Teatro Municipal.
O taxista trava o carro perante um edifício de estilo inglês, com um grande relógio. A Estação da Luz. -Bonito, né?- diz ele. Ainda bem que não estamos em Londres! Já na Avenida de Ipiranga o homem aponta para um enorme arranha-céus. - Alto, né?- fala.- O edifício Itália, um ícone da cidade! - Última parada: Praça Ramos Azevedo. Pago a corrida e entro, atrassada, no hall do Teatro. As pinturas do teto, os vitrais, mesmo o vermelho do estofo das cadeiras... tudo muito requintado; alguém apurou-se em que a imagem da Ópera de París estivesse presente com apenas uma vista de olhos...
Tudo a postos?...O ensaio foi ótimo e não demorou muito, o tempo necessário para que a minha barriga começasse a dar horas, e a minha mente imergisse na ementa do Café do Teatro antes de a ter nas mãos. A garçonete aproxima-se da minha mesa. É uma mulher alta, de cabelo encaracolado e um sorriso doce e branco de comercial, que destaca sobre a sua pele negra. Não mais de cinquenta anos, ela; e no mínimo dez, os seus sapatos de salto azuis cor-de- mar. O burburinho da sala cessa antes de que possa pedir as coxinhas de frango picantes. Três moleques armados entram e fico no chão.- Ninguém se move, valeu?- Começo a ser consciente do assalto quando, baixinho, a garçonete que caiu perto de mim me diz:
-Qual é o seu nome?- Juliette, respondo.
- Eu sou a Berenice, embora todos me chamam de Dona Ivone, diz que sou parecida com a cantora, sabe? Um dos rapazes dá uma pancada ao primeiro violoncelista, e quase ao mesmo tempo começo a lembrar... Lembro quando ganhei a minha vaga na orquestra, e fui eleita entre mais de duzentos candidatos do melhorzinho dos conservatórios da França. Foi o dia mais feliz da minha vida..., depois do nascimento do meu Guillaume, claro. Dona Ivone lembra seu primeiro dia de trabalho no Teatro com dezassete anos, e o rosto do seu pai enquanto ela segurava sua mão para deter o soco antes de ir embora. Foi o dia mais feliz da sua vida..., depois do nascimento do seu filho João, claro. Recorda-se também de um esposo que sumiu numa garrafa de uísque nalgum boteco de SP, e eu doutro que sumiu nos braços de uma flautista de vinte e tal, de nome Céline. Dona Ivone faz pedidos a um tal Ogum; e eu penso num mar em calma, e num bosque cheio de pássaros, e no vento que zoa lá fora, e em por que diabo eu teria pago tanto dinheiro ao meu psiquiatra por umas terapias de merda que não servem para nada...! Umas sirenes ouvem-se na rua.
-Ainda bem que a polícia já chegou, a gente se salva, fique tranquila! -comenta Dona Ivone. Os rapazes falam entre eles, mas não consigo perceber bem. -Os homens vão atirar, vam´embora! -Hesitam um momento, aproximam-se da porta, e um barulho de balas e vidros envolve tudo...
Três corpos ensanguentados ficam à entrada do edifício. Cinco policiais a suar em bicas, retiram mais outro numa maca, dantes da chegada dos médicos-legistas. Os homens deixam-na no chão para recuperar o fôlego. Ainda bem que um lençol branco garante a intimidade do corpo! Apenas uns sapatos azuis cor-de-mar ficam à vista.
No noticiário o jornalista Filipe Silva interrompe a emissão para ligar com a repórter Ana dos Santos.
-Mais outro exemplo da violência dos nossos dias, Filipe!... Três homens muito bem armados entraram no Teatro Municipal hoje de manhã, retiveram as pessoas que lá estavam e mesmo espancaram várias delas, que precisaram assistência médica. Dada a perigosidade dos assaltantes e a sua negativa a se renderem, a Polícia Militar de SP viu-se obrigada a abrir fogo. Os malandros caíram abatidos pelas balas, porém não foram só eles. Conquanto até o momento a informação seja confusa, Filipe, pudemos saber que uma mulher, funcionária do Teatro, também resultou morta...
-Ok Ana, se houver alguma novidade...
-Desculpa Filipe..., é mesmo agora que conhecemos a identidade de uma nova vítima. É uma mulher, loira, de uns cinquenta anos e nacionalidade francesa. Ao parecer, era pianista de profissão, muito celebrizada no seu país. Sem dúvida, uma grande perda para o mundo da Música...
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